O ESTATUTO DA SUBJECTIVIDADE NO CAMPO JORNALÍSTICO
Comunicação apresentada ao I CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE ESTUDOS JORNALÍSTICOS e ao II CONGRESSO LUSO-GALEGO DE ESTUDOS JORNALÍSTICOS, na Universidade Fernando Pessoa, Porto, em 10 de Abril de 2003:
Resumo - Há, como se sabe, um largo consenso quanto ao ideal de objectividade que deve nortear a acção de todo o jornalista. Contudo, sob a capa deste epidérmico acordo, parecem abrigar-se distintas concepções quanto à intervenção da subjectividade na realização de tal ideal. Neste estudo, procura-se mostrar a função determinante que a subjectividade desempenha no campo jornalístico, ao mesmo tempo que se refutam alguns dos principais argumentos habitualmente usados para a denegar.
Abstract - There is, as we know, a large consensus about an ideal of objectivity that should guide the action of every journalist. However, it seems that, under the cover of this epidermic agreement, remain some distinct conceptions, related to the intervention of the subjectivity in the achievement of such an ideal. This study tries to show the decisive function that subjectivity fulfills within the journalistic field, while one refutes some of the most significant arguments commonly used to deny it.
Subjectividade versus objectividade
Embora tributária da chamada interioridade humana - crenças, afectos, expectativas, desejos, emoções, etc. (subjectividade ontológica) – a subjectividade de que vamos aqui tratar, e que mais se relaciona com o jornalismo, é a que respeita aos juízos ou afirmações que, por não serem susceptíveis de prova, são tradicionalmente classificados como juízos subjectivos (subjectividade epistemológica). E a primeira interrogação que nos surge é se, em algum caso, disporemos da maquinaria racional necessária para determinar quando é que uma afirmação é objectiva ou subjectiva. Somos assim remetidos da subjectividade para a sua natural contra-face, a objectividade, e desta para a mais importante categoria filosófica, a verdade, que aliás visa assegurar. Sucede que, embora desde sempre assumida como objecto da filosofia, é na ciência que a busca da verdade encontra, hoje em dia, a sua legitimação. Esta dá-se, como se sabe, sobretudo, ao nível dos métodos e procedimentos de verificação que, na medida em que promovem e atestam o mais elevado índice de rigor, certeza e garantia, fazem emergir a objectividade, se não como critério último, pelo menos, como pressuposto da verdade que se quer descobrir. Porque, como refere Fernando Gil, “é por a ciência perseguir um ideal de verdade que se obriga à objectividade”(1). A palavra objectividade não é, porém, uma palavra mágica que nos transporte de imediato e com a maior evidência para o seu referente. De que objectividade falamos? Tudo depende da resposta que pudermos dar a esta pergunta: teremos acesso a algum método universalmente válido de pensamento objectivo? Não há maneira de responder sem nos confrontarmos com a nossa própria noção de razão e com o grau de confiança que nela poderemos depositar para chegar à verdade objectiva. É necessário, por isso, averiguar se dispomos ou não daquilo a que Simon Blackburn chama o “poder da reflexão racional para descobrir o que há de errado nas nossas práticas e para as substituir por práticas melhores” (2).
A necessidade de uma engenharia conceptual
Para responder a este tipo de questões, não dispomos de um método tão seguro como quando se trata de responder a uma pergunta empírica ou de natureza matemática, em que se pode recorrer, no primeiro caso, à observação directa, a medições ou a regras experimentalmente já verificadas e, no segundo, a cálculos antecipadamente estabelecidos. Tudo de que dispomos é da auto-reflexão, esta capacidade que aparentemente só os seres humanos têm de reflectir sobre si próprios, sobre suas acções e pensamentos, sobre o modo como elaboram as suas teorias e se decidem por certas práticas e não por outras. É a esta auto-reflexão que Simon Blackburn chama de engenharia conceptual e à qual comete, pelo reexame da própria estruturação do pensamento, a ambiciosa missão de descobrir se os juízos que fazemos são objectivamente verdadeiros ou se, pelo contrário, não passam de convicções erróneas ou meramente ditadas pela nossa perspectiva pessoal ou cultural. Sabe-se, no entanto, que, pelo menos desde Protágoras e a sua famosa frase “o homem é a medida de todas as coisas” essa confiança no poder regulador da razão não só vem sofrendo naturais oscilações como se vê ciclicamente posta em causa. Basta pensar na velha querela do subjectivismo-objectivismo. De um lado, os subjectivistas sustentando que não há qualquer possibilidade de chegar a um conhecimento de validade geral, seja porque os nossos sentidos nos enganam, seja porque o próprio acto de conhecer se traduz por uma experiência pessoal incomunicável, seja ainda porque os nossos valores e juízos são sempre condicionados pela comunidade sócio-cultural a que pertencemos. Do outro lado, os objectivistas que procuram resistir a uma onda de total relativização da razão, chamando a atenção, entre outras coisas, para a necessidade de existir uma instância racional que permitisse validar a própria afirmação do que é subjectivo.
A razão como supremo tribunal da opinião
Quem tem razão? Colocar as coisas desta forma é já, por si só, reconhecer uma racionalidade que terá forçosamente de se situar para lá das crenças, das preferências e valores individuais ou subjectivos. É pressupor uma razão objectiva, que possa funcionar como se de um verdadeiro supremo tribunal de opinião se tratasse, com competência específica para decidir, em última instância, sobre todos os problemas ou conflitos que se apresentem à análise e reflexão. Um tribunal falível - ou não fosse humano - mas, em qualquer caso, dotado do mais elevado índice de confiabilidade ao nível do raciocínio, do juízo, da decisão. E de facto, não se vê como poderia ser de outro modo. Porque sem o postulado de uma razão universalizável e objectiva e, portanto, legitimadora, como poderíamos alguma vez aspirar a fazer a afirmação fosse do que fosse? O próprio debate, por exemplo, ficaria manietado por não haver possibilidade de se aferir o valor objectivo das diferentes posições em confronto. Sem qualquer pretensão de verdade, nenhuma afirmação seria oponível e a própria comunicação - enquanto partilha e interacção de saberes – estaria condenada ao fracasso. E no entanto, por intuição, mas também pelo que observamos na experiência quotidiana, sabemos que não é isso o que acontece. Ao contrário, a razão parece impor-se a vários níveis: como instância avaliadora de tudo o que nos esforçamos por compreender; como guia orientadora do pensamento e da acção; como centro e motor do conhecimento puramente reflexivo que está na base de todo o progresso, nomeadamente, de carácter filosófico e científico.
Aqui chegados, pode não ser fácil recusar a configuração da autoridade da razão como uma coisa independente, onde a hierarquia dos nossos pensamentos surge como seu apropriado reflexo – tal como nos propõe Thomas Nagel no seu livro “A última palavra” (3). Trata-se de uma concepção da razão onde “em primeiro lugar, o quadro de referência mais abrangente de todos os pensamentos tem de ser uma concepção do que objectivamente for o caso – do que for o caso sem restrições subjectivas ou relativas. Em segundo lugar, a tarefa de conduzir os nossos pensamentos num tal quadro de referência implica ter confiança em que certos tipos de pensamento irão regular e constranger outros, o que identifica razões gerais, promovendo assim a objectividade” (4). Certo é que nada disto tem a ver com a utópica concepção de razão absoluta, nem com uma certeza indubitável que nos garanta a completa e definitiva apropriação compreensiva do objecto. O que aqui se quer negar é, tão-só, que os padrões de verificação do que é certo ou errado, verdadeiro ou falso, bom ou mau, dependam unicamente do pensamento ou vontade individual, ou do que for aceite numa dada sociedade ou cultura. Não porque se desqualifique o consenso, como requisito de generalização ou aceitação de qualquer proposta, de qualquer opinião. Mas antes, por se considerar que não é por resultarem de um consenso que as razões são, forçosamente, objectivas. Pelo contrário, será por serem objectivas que se podem tornar consensuais. Como diz Perelman, “para duvidar é preciso ter uma razão que justifique a dúvida” (5). E o consenso, há que reconhecê-lo, funciona mais como referencial democrático da tomada de decisões do que como indicador fiável da qualidade do raciocínio que o gerou. A ideia de razão que daqui decorre não andará muito longe, por isso, daquela que Rui Grácio parece ter em mente quando diz que “não será identificada com nenhuma faculdade eterna e imutável, mas concebida como um ideal de universalidade” (6). Consequentemente, a função normativa que a verdade desempenha relativamente às opiniões será aferida pela reflexão crítica e nunca por imposição dogmática.
É graças a esta confiança na razão e no seu ideal de universalidade que podemos reconhecer a objectividade (ou subjectividade) desta ou daquela afirmação, deste ou daquele juízo. Naturalmente que o fazemos sempre em função dos métodos de verificação disponíveis e do respectivo grau de certeza que eles possam conferir à determinação do valor de verdade de cada asserção. Neste sentido, o par subjectividade-objectividade, não deve ser representado como uma antinomia radical, onde para a classificação epistemológica de qualquer juízo só restassem duas alternativas - ou subjectivo ou objectivo - mas sim como uma escala que admite um contínuo de posições ou graus entre esse dois valores extremos. De uma afirmação (ou asserção) se dirá então que será tanto mais subjectiva quanto menos razões tivermos para pensar que o seu valor de verdade é verdadeiro e, inversamente, tanto mais objectiva quanto mais provas ou razões pudermos avançar para a sua aceitação geral. Este critério de distinção entre subjectivo e objectivo tem, além do mais, a vantagem de se coadunar perfeitamente com a noção já atrás defendida de que os padrões de verificação do que é verdadeiro ou falso não dependem unicamente dos sujeitos que emitem os respectivos juízos. Uma afirmação será, pois, tanto mais objectiva quanto mais justificada se mostre. Mas uma coisa é determinar as condições em que uma asserção pode ser considerada objectiva ou subjectiva e outra, bem diferente, é saber se seremos capazes de distinguir com o maior rigor possível entre asserções objectivas e asserções subjectivas. Esse é o desafio que recai sobre nós: o de não cedermos à facilidade ou encanto das nossas heurísticas espontâneas. Porque, como sustenta Maximo Palmarini, a racionalidade não é um dado imediato “(...) mas antes um complexo exercício que é primeiro conquistado e mantido depois com um certo custo psicológico” (7).
A armadilha do primado da subjectividade jornalística
Justificada a confiança na razão como requisito essencial do próprio acto de conhecer, analisemos agora o modo como a subjectividade intervém no campo jornalístico. Partiremos do princípio de que, tal como não se deve confundir o real com o ideal, também não podemos meter aqui, no mesmo saco, a prática jornalística corrente, que é o que é, e a prática jornalística a que podemos aspirar, que não é mas poderia ser, em função das respectivas potencialidades e limites epistemológicos. E isto porque uma das razões porque o debate sobre a categoria da subjectividade jornalística permanece ainda algo obscuro residirá, precisamente, no facto de nem sempre se atender a essa distinção. Por exemplo, quando alguém aparece a proclamar o primado da subjectividade no jornalismo, conviria saber se se está a referir apenas ao que observa na prática jornalística do dia-a-dia - que, logicamente, há que retratar com a maior fidelidade possível aos factos - ou se, diferentemente, com isso quer exprimir um juízo de radical cepticismo quanto à possibilidade de se garantir qualquer objectividade na actividade de informar. Primeiramente, para que não se corra o risco de, sob o mesmo nome, estarmos, afinal, a falar de coisas diferentes, já que a subjectividade que se observa no trabalho deste ou daquele jornalista, neste ou naquele meio de informação, pode não ter nada a ver com o que é racionalmente admissível ou desejável; e depois, porque, como defende Furio Colombo, é preciso “não se cair na armadilha dupla da adoração e da recusa da objectividade” (8), já que, se a primeira levaria a um projecto impossível, a segunda colidiria frontalmente com a principal finalidade do jornalismo, que é, como se sabe, a de prestar uma informação credível, objectiva e o mais aproximada possível da realidade. Logo, um jornalista que venha a público defender o primado da subjectividade e que ao mesmo tempo continue a pugnar, diariamente, pela objectividade jornalística nos meios de informação onde desenvolve a sua actividade profissional, cai, até certo ponto, nessa dupla armadilha a que se refere Furio Colombo. Receamos que seja o caso de José Rodrigues dos Santos, quando no seu livro “A Verdade da Guerra” tão categoricamente afirma o “primado da subjectividade” (9), afirmação a que, aliás, procura conferir uma auréola de irrecusável cientificidade, nomeadamente, quando escreve: “apesar de os outros campos do conhecimento, incluindo a matemática, a física e a história, já terem perdido as ilusões quanto à possibilidade de alguma vez possuirem um discurso objectivo, o campo jornalístico demorou a perceber a evidência do primado da subjectividade e a insistir em que o seu discurso apreende a realidade, não a reconstrói”(10).
Subjectividade ou incerteza?
A questão é esta: será realmente verdade que a matemática, a física e a história já perderam as ilusões “quanto à possibilidade de alguma vez possuirem um discurso objectivo”? O que se pode aqui entender por “discurso objectivo”? A estrutura lógico-conceptual em que assenta o corpus teórico de cada disciplina científica? A rede de interconexões ontológicas do seu objecto de estudo? Ou ainda, o mero relato ou divulgação dos respectivos conhecimentos científicos? É que o processo de descoberta ou invenção a que o cientista se submete para chegar à produção de um novo conhecimento, pode não ter nada a ver com o processo de comunicação que posteriormente vai permitir a partilha social desse conhecimento. Como é óbvio, são processos que obedecem a lógicas, finalidades e discursos diferentes. Em qualquer caso, note-se que mantêm em comum a fidelidade a um conjunto mínimo de princípios, regras, procedimentos e crenças, suportados por sólida justificação racional. Não são, pois, meras expressões de uma sobredeterminante subjectividade. Por outro lado - e como adiante mostraremos - não é verdade que a matemática, a física e a história já tenham perdido as ilusões quanto à possibilidade de alguma vez possuirem um discurso objectivo. Perderam, isso sim, as ilusões quanto à objectividade absoluta - se é que alguma vez as tiveram. E só contra essa ultrapassada concepção de objectividade absoluta se poderia afirmar o primado da subjectividade nos diversos campos do conhecimento, incluindo o jornalismo. Pelo contrário, os cientistas de hoje, como lembra Daniel Dennet, “acham-se tão fracos e falíveis quanto qualquer outra pessoa, mas ao reconhecer essas mesmas fontes de erro em si mesmos e nos grupos a que pertencem, conceberam complicados sistemas para atar as suas próprias mãos, impedindo energicamente que as fragilidades morais e os preconceitos contaminem os seus resultados” (11). Não há, portanto, aqui, uma cedência facilitista perante a dificuldade nem o comodismo intelectual de remeter todos os erros e insucessos para a esfera de uma suspeita macro-subjectividade. O que há é o reconhecimento de que “os métodos da ciência não são completamente seguros mas podem ser constantemente aperfeiçoados” (12) ao mesmo tempo que uma tradição de crítica e fiscalização sobre a própria actividade leva à detecção e superação sistemática das respectivas falhas ou defeitos. Mas este, como é bom de ver, é o primado da objectividade e não o da subjectividade.
E, ao contrário do que afirma José Rodrigues dos Santos, o princípio da incerteza não veio reforçar o subjectivismo (13) pois ao estabelecer que “é impossível indicar simultaneamente, à vontade e exactamente, a posição e a velocidade de uma partícula atómica” (14) o que realmente Heisenberg produziu foi um conhecimento científico objectivo, ou seja, um conhecimento susceptível de ser verificado por qualquer outra pessoa (obviamente, com a indispensável formação científica especializada), e este é que é o verdadeiro critério de objectividade de um conhecimento, objectividade que não se analisa em termos da maior ou menor aproximação compreensiva ao objecto conhecido e sim, da possibilidade ou não de universalizar tal aproximação. Ou seja, apenas o conhecimento possível pode ser objectivo (ou não). Não se confunda, por isso, incerteza com subjectividade. O mesmo se diga dos teoremas de Gödel: o facto de revelarem que é impossível provar todos os enunciados da matemática e que nenhum sistema formal está completo, é em si mesmo um conhecimento objectivo. E nem a aparente contradição entre teoria da relatividade e a mecânica quântica, nem a indefinição entre determinismo causal e determinismo meramente probabilístico (ao nível do princípio geral que rege o universo) vieram pôr em causa a objectividade do conhecimento científico. Recorde-se, uma vez mais, que a objectividade de uma teoria ou afirmação científica não tem a ver com o estádio de desenvolvimento em que se encontra uma dada disciplina do saber ou com os naturais limites da compreensão humana mas sim, mais exactamente, com a existência ou não de métodos ou instrumentos de verificação que proporcionem os mesmos resultados, independentemente dos sujeitos que os busquem. E tanto a teoria da relatividade como a mecânica quântica respeitam, como se sabe, essa exigência metodológica. Não surpreende, por isso, a conclusão a que chega o famoso físico inglês Stephen Hawking no seu não menos famoso livro “Breve História do Tempo”: “Tal como o princípio da incerteza, o teorema da incompletude de Gödel pode ser uma limitação fundamental à nossa capacidade de compreensão e previsão do universo, mas pelo menos até agora não constituiu obstáculo à demanda de uma teoria unificada completa” (15). A pergunta é: como seria possível o tão qualificado físico continuar a aspirar por uma teoria unificada completa do universo se a física e a cosmologia já tivessem perdido todas as ilusões de objectividade?
A denegação da subjectividade
Afirmar então que é a subjectividade que predomina no jornalismo será, talvez, a melhor forma de denegá-la, de a descredibilizar, de substituir o velho mito da objectividade por um novo mito: o mito da subjectividade. Principalmente se - como é o caso – com isso se pretende não propriamente caracterizar o estado actual do jornalismo concreto (ou, pelo menos, de algumas da suas práticas) mas antes, supostamente, estabelecer os incontornáveis limites epistemológicos que seriam inerentes a todo o discurso jornalístico. É que, fundando-se tal afirmação, basicamente, no pretenso abandono do conceito de objectividade ao nível do pensamento científico mais avançado, é bom de ver que, provada que seja a falsidade desse abandono – como julgamos ter mostrado - é a própria noção de subjectividade que colapsa, e se nega, por absurda.
Mas, no seio do jornalismo, a subjectividade tem sido negada de forma bem mais clara e directa. Nega-se, por exemplo, porque face à teoria de que “os factos falam por si”, descrever o acontecimento isenta e friamente é tudo o que há a fazer para que as notícias correspondam fielmente à realidade. E neste sentido, a subjectividade assume-se como fonte de perturbação, quer da observação dos factos quer da sua comunicabilidade, surgindo sempre mais ou menos associada ao facciosismo e à manipulação, enquanto a objectividade, pelo seu lado, é tradicionalmente encarada como uma garantia de rigor informativo e verdade. Daí os conhecidos rituais de objectividade (contrastação das fontes, citação entre aspas, etc.) que, não obstante favorecerem, de facto, o conhecimento objectivo, também servem, por vezes, de desculpa para os jornalistas quando dão informações erradas ou manipuladoras, como, acertadamente, refere Jorge Pedro de Sousa (16). Neste caso, porém, estaremos já perante um problema ético (e não epistemológico). Tal como no exemplo menos feliz com que José Rodrigues dos Santos procura ilustrar o primado da subjectividade jornalística: “ao apresentar os dois lados de um problema, o jornalista pode saber que um dos lados está a mentir, mas as regras da objectividade compelem-no a deixar de fora a sua opinião consciente e a apresentar ambos os lados em posição de igualdade” (17). Será preciso lembrar que um jornalista que agisse desse modo estaria também a mentir? Do que não há dúvida é que se trata de um falso dilema, pois se o jornalista já souber qual o lado que mente, é porque também já sabe de que lado está a verdade. Logo, não precisa de seguir qualquer regra. Seria, aliás, muito estranho que trocasse a sua “opinião consciente” por uma mera regra de objectividade.
Nega-se a subjectividade também porque, para além da “distorsão” que introduziria na comprensão dos “puros factos”, parece haver o entendimento generalizado de que a subjectividade só pode levar à opinião e esta, como se sabe, vive de há muito numa difícil coabitação jornalística com a notícia. O que faz com que, de um modo geral, a tendência seja a de cair no erro de se associar a objectividade à notícia e a subjectividade à opinião. Mas a subjectividade é negada ainda por muitos daqueles que vêem na sua admissão mais uma acha para a fogueira do relativismo total, de onde só pode sair queimada a própria confiança na razão. Criar-se-ia assim a ilusão de que no domínio do conhecimento tudo é subjectivo: - as coisas seriam o que cada qual achasse ou quisesse que fossem; os valores seriam meras preferências individuais; cada opinião ou juízo valeria apenas para o próprio sujeito enunciante. O que, como já antes se referiu, não só inviabilizaria a possibilidade de se afirmar fosse o que fosse, como fatalmente nos levaria a uma paragem ou até a um retrocesso na nossa compreensão do mundo e da vida. É que, como diz Daniel Dennet “o sentido de fazer perguntas é encontrar respostas verdadeiras; o sentido da medição é medir de forma precisa; o sentido de produzir mapas é encontrar o caminho para o nosso destino” (18). E isto pressupõe e exige, naturalmente, que cada uma dessas operações possa levar a resultados objectivos, ou seja, válidos pra todos.
Da subjectividade dos factos à objectividade da opinião
Resta saber se estas críticas se mostram inteiramente certeiras ou se, pelo contrário, focando unicamente a face negativa da subjectividade, elas próprias justificam alguns reparos e esclarecimentos. Inclinamo-nos para esta última hipótese. Desde logo, porque temos de reconhecer a função determinante que a subjectividade exerce em todas as áreas do saber teórico e prático, logo, também no jornalismo. Quer se trate do conhecimento científico, filosófico ou jornalístico, o conhecimento é sempre de e para um sujeito humano, um sujeito cuja configuração ontológica é, como se sabe, em grande parte, epistemologicamente inobjectivável. Porque não existem métodos ou processos de verificar o que um dado sujeito está a pensar ou a sentir. Nem temos como provar todas as suas crenças, os seus valores, a sua sensibilidade. Ainda que nos confesse o que está a pensar ou a sentir num dado momento, ele próprio nunca o poderá fazer através de uma afirmação objectiva, pois não dispõe de nenhum meio de prova de que a sua realidade interior ou vivencial é essa e não qualquer outra. Resta-nos acreditar nele ou não, com base na confiança que nos mereça, pois aqui, sim, “é tudo muito subjectivo”. Ainda assim, não se pode sonegar à análise a presença de uma subjectividade mais conotada com o lado emocional (e sentimental) do jornalista. Principalmente se, como pensamos, for teoricamente legítimo estabelecer uma analogia da relação entre esta subjectividade e o conhecimento objectivo, com aquela relação de indissociabilidade que António Damásio constata existir entre emoção e razão. Que é, como se sabe, a de que a emoção, sendo embora fonte de perturbação e erro para a razão, é, ao mesmo tempo, condição da sua própria possibilidade. Confirmada esta analogia, poderemos, por certo, afirmar também que sem subjectividade nenhuma objectividade é possível. E isto, não apenas naquele sentido óbvio ou trivial de que sem sujeito humano não haveria conhecimento, mas, inclusivamente, no plano das condições, meios e processos da sua produção. Talvez porque cada sujeito saiba sempre mais do que conseguiria provar, um “mais” que lhe advém da intuição, da sensibilidade, de percepções difusas e padrões de comportamento em grande parte inconscientes, que no acto de conhecer se oferecem à razão para os guiar. Talvez porque nunca haja uma coincidência total ou perfeita entre verdade, prova e certeza. A ideia com que se fica é a de que há aqui sempre uma subjectividade, também ontológica, que pode influenciar ou condicionar decisivamente o conhecimento e a comunicação dos próprios factos e que, por outro lado, as opiniões ou comentários emitidos pelo jornalista ganharão tanta mais credibilidade quanto mais objectivamente forem fundados. E é no quadro deste mesmo binómio de subjectividade-objectividade que igualmente se processará a recepção de tais factos ou opiniões por parte do leitor, do ouvinte ou do espectador. Porque, como bem lembra António Fidalgo, “a informação continua a ser um elemento essencial à formação cívica dos cidadãos, só que essa formação é uma opção dos receptores de informação e não uma educação imposta pelos jornalistas” (19).
Não nos alongaremos na apreciação à crítica da subjectividade que se apoia na concepção dos “puros factos”, pois sabe-se como há muito se encontra desacreditada. Descrédito, de resto, bem patente na taxativa afirmação de Schudson: “o esforço de comunicar um facto absoluto é simplesmente uma tentativa de alcançar aquilo que é humanamente impossível” (20). Reteremos apenas a ideia de que tudo o que está ao alcance do jornalista é a interpretação desses factos. E seremos igualmente breves quanto aos temores hiper-racionalistas de que o reconhecimento da subjectividade se transforme num apelo ao irracional e à desresponsabilização teórica, pois a noção de subjectividade que aqui vimos desenhando não só é conciliável com a confiança na razão como dela depende para se afirmar. Mas não poderíamos terminar sem levantar duas questões muito concretas quanto à negação que tem por base a dupla equiparação da subjectividade à opinião e da objectividade à notícia.
A primeira tem a ver com a (im)possibilidade real de se vir a manter essa distinção, pelo menos com o rigor que lhe é conferido nos códigos deontológicos de inúmeras associações de jornalistas. Poderemos formulá-la deste modo: numa altura em que cada vez mais a pressão das audiências e a necessidade vital de se assegurar a viabilidade económica das empresas jornalísticas, leva a que a notícia seja como que revestida de um banho persuasivo para atrair o maior número possível de leitores, ouvintes ou espectadores, que sentido fará, num futuro próximo, tal distinção? “Como não considerar opinião o destaque diferente que cada bom jornal atribui às notícias, variando a sua localização, decidindo abrir o jornal com elas ou divulgá-las nas páginas interiores?” (21). A segunda questão nasce do equívoco que parece residir na crença de que a notícia se situa, por assim dizer, no reino da objectividade jornalística enquanto a opinião - seja a do editorial, do artigo ou do comentário – pode dar-se ao luxo de ser menos rigorosa, precisamente porque emerge da subjectividade do respectivo articulista e representa apenas a sua opinião. Ao que, se poderia ainda acrescentar, o fundamento da notícia é, regra geral, verificável e o da opinião, não. Pensamos que não se justifica tal entendimento. Por um lado porque, como refere Mar de Fontcuberta, embora haja fundamentalmente dois grandes tipos de géneros jornalísticos - os que servem para dar a conhecer os factos e os que dão a conhecer as ideias ou opiniões (22) - a verdade é que frequentemente se misturam numa mesma peça, sendo difícil identificá-los. Basta ver o que ocorre no chamado jornalismo de interpretação onde o leitor encontra os juízos de valor (comentário) ao lado da narração dos factos (relato), quando não mesmo, no interior da própria narração (23). Depois, porque sobre o jornalista recai sempre a mesma exigência ética de respeitar a verdade, quer quando relata um facto quer quando o comenta. E se todos os factos requerem interpretação, não é menos verdade que esta pode e deve representar uma permanente tentativa de passar da subjectividade à objectividade. O que a subjectividade não pode é continuar a ser vista como albergue de erros grosseiros, manipulações evidentes, atropelos lógicos ou pura discricionaridade, nem servir de desculpa para opiniões sem a mínima justificação racional. Porque sendo embora condição do próprio conhecimento, só objectivamente se pode afirmar sempre que se apresente como portadora de alguma razão.
Américo de Sousa
Mestre em Ciências da Comunicação
LabCom da Universidade da Beira Interior-Covilhã-Portugal
NOTAS
1. Fernando Gil, (2001), Mediações, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 173
2. Simon Blackburn, (2001), Pense, Lisboa: Gradiva, p. 22
3. Thomas Nagel, (1999), A última palavra, Lisboa: Gradiva, p. 25
4. ibidem
5. cit. in Rui Grácio, (1993), Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, p.44
6. Rui Grácio, (1993), Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, p.48
7. Maxximo Piattelli-Palmarini, (1997), A ilusão de saber, Lisboa: Cículo de Leitores, p. 127
8. Furio Colombo, (1998), Conhecer o jornalismo hoje-Como se faz a informação, Lisboa: Editorial Presença, p. 42
9. José Rodrigues dos Santos, (2002), A verdade da guerra, (3ª. ed.), Lisboa: Gradiva, p. 25
10. ibidem, p. 56
11. Daniel Dennett, (1997), “Fé na verdade” - artigo inédito publicado em Disputatio-Journal of Philosofy in the Analytic Tradition, Vol. 3 (Novembro 1997), disponível igualmente na internet em http://disputatio.tripod.com/articles/003-1.pdf, p. 8.
12. ibidem, p. 10
13. José Rodrigues dos Santos, (2002), A verdade da guerra, (3ª. ed.), Lisboa: Gradiva, p. 37
14. cit. in ibidem, p 26
15. Stephen Hawking, (2000), Breve história do tempo, Lisboa: Gradiva, p. 180
16. Jorge Pedro de Sousa, (2000), As notícias e os seus efeitos, Coimbra: Edições Minerva, p. 84
17. Jose Rodrigues dos Santos, (2002), A verdade da guerra, (3ª. ed.), Lisboa: Gradiva, p. 60
18. Daniel Dennett, (1997), “Fé na verdade” - artigo inédito publicado em Disputatio-Journal of Philosofy in the Analytic Tradition, Vol. 3 (Novembro 1997), disponível igualmente na internet em http://disputatio.tripod.com/articles/003-1.pdf, p. 6
19. António Fidalgo, (1996), O Consumo de informação. Interesse e curiosidade, Covilhã: BOCC, disponível na internet em http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=fidalgo-antonio-interesse-curiosidade-informacao.html, p.6
20. cit. in Nelson Traquina, (2002), Jornalismo, Lisboa: Quimera Editores, Lda, p. 141
21. Furio Colombo, (1998), Conhecer o jornalismo hoje-Como se faz a informação, Lisboa: Editorial Presença, p. 56
22. Mar de Fontcuberta, (1999), A notícia, Lisboa: Editorial Notícias, p. 80
23. ibidem, p. 81
BIBLIOGRAFIA
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