A RETÓRICA DA VERDADE EM PLATÃO
Por Américo de Sousa (1)
Resumo: Existe a convicção generalizada de que Platão terá diabolizado a retórica, especialmente, no famoso diálogo Górgias. Mas nesse caso, como compreender o seu tão evidente estilo retórico? Da leitura atenta da sua obra, forçoso é concluir que nem a contradição, de tão óbvia, lhe poderia ter escapado, nem o seu empenho filosófico pela verdade e pelo bem, admite quebra de intenção ética. O que leva a formular a hipótese de que Platão nunca tenha tido da retórica uma visão tão negativa como a que habitualmente se lhe atribui. Ainda que se trate de uma hipótese cuja plena confirmação é praticamente impossível, procura-se neste estudo avançar algumas das razões que lhe conferem toda a legitimidade. Ao mesmo tempo, propõe-se uma nova interpretação quer sobre o pensamento retórico de Platão, quer sobre a retórica da verdade a que terá recorrido.
Palavras-chave: Retórica-Platão-Verdade
Abstract: There is a general belief that Plato would have demonized rhetoric, specially in the famous dialogue Gorgias. But, in that case, how to fully understand his evident rhetoric style? From the thorough reading of his work, one is compelled to conclude that not even contradiction, so obvious, could have been disregarded, nor his philosophical quest for truth and for the good could admit a breach in ethical intentions. That compels us to formulate the hypothesis that Plato has never had such a negative sight of rhetoric as it is commonly referred. Even though it is a hypothesis which full confirmation is virtually impossible, this essay seeks to put to rout some of the reasons that give it full legitimacy. At the same time, it is given a new interpretation of Plato’s rhetoric thought, on the one hand, and of the rhetoric of truth to which he might have recurred to, on the other.
Key Words: Rhetoric – Plato - Truth
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Quem fala por Platão?
Ainda que Isócrates tenha chegado a afirmar que “os demais filósofos, incluindo Platão, não passariam de sofistas pouco sérios" [2], seria, no mínimo, caricato admitir que um filósofo da estatura de Platão alguma vez argumentasse com propósitos menos éticos. Logo, se queremos aproximar-nos do que terá sido a sua ideia de retórica, vamos ter que descobrir uma explicação mais plausível para a frequência com que Sócrates exibe os mesmos procedimentos que tão veementemente ataca nos retóricos. Explicação que poderá igualmente lançar alguma luz, quer sobre a omnipresença de uma retórica da verdade no Górgias, quer sobre a natureza das críticas à retórica presentes neste famoso diálogo. Bem mais plausível do que suspeitar de grosseira contradição ou de eventual fraqueza ética, será admitir que Platão nunca tenha tido da retórica uma visão tão negativa como aquela que passou à História e que, ainda hoje, prevalece entre a maioria dos seus leitores ou intérpretes. O que, a confirmar-se, deixaria também em aberto a possibilidade das próprias falácias que integram os diálogos terem sido didacticamente convocadas para assegurarem maior amplitude e vivacidade ao confronto dialéctico. Mas que razões podem levar à formulação de uma tal hipótese?
Em primeiro lugar, o facto da obra de Platão apresentar uma dificuldade de interpretação adicional face à da generalidade dos restantes textos filosóficos, na medida em que nela não estão explícitas nem a posição do autor nem a sua intenção, quer quanto à obra, no seu todo, quer quanto a qualquer dos personagens que a integram ou cada uma das particulares situações nelas descritas. É assim que, enquanto a leitura da Retórica, de Aristóteles, nos põe em contacto directo com o pensamento do grande codificador da retórica, já a trama do Górgias apenas nos revela o que “pensa” cada um dos diferentes personagens a que Platão recorreu. Mas Platão, propriamente dito, esse ficou de fora, não o ignoremos. Pelo que, para além de se desconhecer o que o levou a escrever este diálogo, sobra ainda o problema que mais importa aqui: como interpretar a sua obra? Diz Thomas Szlezák que da leitura das obras de Platão se poderá dizer o mesmo que um dia disse Aristóteles a propósito da verdade em geral: “a coisa é em parte fácil porque ninguém pode errar totalmente o tiro, e em parte difícil, porque ninguém alcança a precisão necessária” [3]. Uma maneira muito ilustrativa de equacionar a dificuldade do problema, que igualmente circunscreve a esfera da própria indagação. E este é o primeiro factor de incerteza que recai sobre a possibilidade de se conhecer o verdadeiro pensamento retórico de Platão.
Em segundo lugar, é tão forte e tão frequente a tendência para se identificar as ideias filosóficas de Platão com o que diz o personagem Sócrates, que ameaça transformar-se em mera rotina. E, no entanto, é, no mínimo, duvidosa a legitimidade de tal identificação. Existem, por certo, indícios (mais ou menos dispersos e quase sempre dúbios) que nos permitem antever essa possibilidade, mas nada mais do que isso. É o caso da ligação que sempre se poderá fazer entre a enorme admiração que Platão sentia pelo seu amado mestre e o facto de, em quase todas as suas obras, ter reservado para Sócrates o papel de condutor do diálogo, dotando-o mesmo de uma tal superioridade sobre os demais intervenientes, que lhe permite superá-los em qualquer situação. Verifica-se, igualmente, que nos diálogos mais agonísticos, Sócrates “pode replicar a todos os participantes mas ele próprio nunca é replicado” [4]. E não custa ver aqui, duas opções reportáveis ao pensamento filosófico do próprio autor que, no entanto, não confirmam, por si só, a aludida legitimidade de identificação. Há ainda o “argumento do anonimato”, segundo o qual, embora em nenhuma parte da sua obra Platão fale em nome próprio e tenha antes optado por transpor na forma dramática a confrontação de opiniões de outros, “o recurso à forma dialogada não significa que Platão tenha querido permanecer anónimo ou esconder-se por detrás das opiniões dos seus personagens fictícios (...)”[5], assim como não consta que tenha alguma vez feito circular as suas obras sob nome falso.
Mas a questão é bem outra. Não se trata de estabelecer (ou desfazer quaisquer dúvidas sobre) a autoria dos diálogos, pois não está em causa quem escreveu a obra e sim o que é que o autor quis escrever ou comunicar. É esta tarefa hermenêutica, que nenhuma obra filosófica dispensa (mas que no caso dos diálogos assume uma excepcional dificuldade), que teremos pela frente sempre que nos interrogarmos sobre a perspectiva platónica da retórica. Diz-se, com muita frequência, que essa excepcional dificuldade de interpretação fica a dever-se, em grande parte, ao facto de Platão ter escrito os seus textos filosóficos sob a forma de diálogo. Mas não é verdadeiramente a forma dialógica que se opõe ao lance hermenêutico. O que dificulta a compreensão da obra de Platão é o género literário e não a forma. É cada obra ser um drama e não apenas um diálogo, ou dito de outro modo, pura ficção em vez do eventual relato de algum debate filosófico em concreto. O que nos desconcerta é o facto dos seus diálogos serem a um tempo filosofia e poesia, ciência e arte e de nunca se discernir com rigor através de que personagem o autor se expressa (se é que se expressa) ou se o faz em registo de sinceridade ou de pura ironia. É, enfim, a teatralidade que Platão põe ao serviço da comunicação filosófica, distribuindo os papéis mais adequados a cada um dos intervenientes, não apenas em função da controvérsia que pretende desenvolver, mas também, naturalmente, de modo a assegurar uma dramatização que prenda a atenção do leitor. Os diálogos devem ser lidos como dramas, diz Szlezák [6], para quem a configuração dramática e psicagógica das conversações filosóficas era para Platão tão lúdica e engenhosa que os próprios diálogos se terão ficado a dever também ao seu instinto de genial artista e escritor. Poderemos então confiar na literalidade de uns diálogos que, por vezes, parecem mostrar-se mais acessíveis à crítica de arte do que à análise filosófica?
A mais atenta leitura do Górgias não conduz à evidência de que todas as intervenções de Sócrates coincidam fielmente com o pensamento retórico de Platão. Mas ainda que tal sucedesse, quem garante que o personagem Sócrates é o único representante das suas doutrinas? Porque não serão os restantes intervenientes também importantes para se apreender a globalidade do pensamento retórico do autor? Que grau de correspondência existirá entre as diferentes “falas” dos respectivos personagens e o pensamento de Platão? Terá cada personagem sido desenhado exactamente à medida do que essas figuras históricas eram realmente? Quando Sócrates leva Górgias a admitir que quem queira aprender retórica com ele ficará “em condições de ganhar o assentimento de uma assembleia sobre qualquer assunto, sem a instruir e recorrendo apenas à persuasão” [7], está apenas a querer dizer que o retor não precisa de conhecer a matéria que se discute, basta-lhe uma certa técnica de persuasão. Mas ao fazê-lo, vai contra os princípios enunciados pelo próprio Górgias “que em sua classificação dos discursos, requeria do retor um conhecimento seguro dos argumentos, tanto dos ‘meteorológicos’ (isto é, das ciências naturais) como dos judiciais ou filosóficos” [8]. Sabendo-se como Platão dominava a técnica dramática com que estruturou os seus diálogos, até onde terá levado a manipulação dos seus personagens? Não se sabe. Logo, ver nas declarações retóricas de Sócrates autênticas expressões do pensamento platónico, é cair no erro crasso de tomar como certo o que permanece duvidoso. Seria possível, por exemplo, que Górgias alguma vez se mostrasse tão embaraçado frente a Sócrates, como aparece no diálogo que levou o seu nome, a ponto de desaparecer de cena logo no início da discussão e ficar praticamente sem dizer mais nada até final? Estas perguntas não são perguntas retóricas. Mas todas ou quase todas criam uma situação genuinamente retórica se, como se julga, para elas não existe ainda uma resposta exacta ou inteiramente satisfatória. Porque este é o lugar de eleição da retórica, aquele em que surge uma questão ou pergunta e não dispomos de “via única” para lhe responder. Só o recurso à legitimidade crítico-consensual permite descobrir e fazer partilhar a melhor explicação possível para cada problema. A opinião a que a retórica conduz surge então, para todos os efeitos, como uma verdade ainda não estabelecida, cuja aprovação consensual, à falta de melhor critério, lhe confere um importante valor de uso e de oponibilidade. Daí que a retórica seja também, em última análise, um excelente método de testar a sustentabilidade das opiniões.
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Notas
[1] Investigador do LabCom da Universidade da Beira Interior
2 Sobrevivência bem ilustrada pelo recrudescimento dos estudos retóricos, especialmente a partir da década de sessenta, do século passado.
3 Vide os trabalhos preparatórios para a constituição do GT-Grupo de Trabalho de Retórica e Argumentação, no âmbito da SOPCOM - Associação Portuguesa das Ciências da Comunicação, bem como a inclusão de uma Mesa Temática sobre Retórica da Argumentação, nos mais recentes Congressos das Ciências da Comunicação realizados no nosso país (III SOPCOM, II Ibérico e VI LusoCom).
4 Um desses nefastos efeitos traduz-se na persistência de uma certa aversão à retórica por esta se orientar para o consenso e não para a verdade, quando, como tão oportunamente lembrou Chaim Perelman, sem as opiniões, as aparências e as impressões, o acesso à verdade nos estaria vedado.
5 Na concepção platónica, a adulação equivale a uma prática vergonhosa que dissimuladamente se faz passar por arte e que, sempre por intermédio do prazer, persegue e ludibria os incautos a quem convence do seu alto valor.
6 Platão defende que a cozinha é a adulação disfarçada de medicina.
7 Platão, Górgias, Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 82-83.
8 id., ibid., p. 66.
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Em primeiro lugar, o facto da obra de Platão apresentar uma dificuldade de interpretação adicional face à da generalidade dos restantes textos filosóficos, na medida em que nela não estão explícitas nem a posição do autor nem a sua intenção, quer quanto à obra, no seu todo, quer quanto a qualquer dos personagens que a integram ou cada uma das particulares situações nelas descritas. É assim que, enquanto a leitura da Retórica, de Aristóteles, nos põe em contacto directo com o pensamento do grande codificador da retórica, já a trama do Górgias apenas nos revela o que “pensa” cada um dos diferentes personagens a que Platão recorreu. Mas Platão, propriamente dito, esse ficou de fora, não o ignoremos. Pelo que, para além de se desconhecer o que o levou a escrever este diálogo, sobra ainda o problema que mais importa aqui: como interpretar a sua obra? Diz Thomas Szlezák que da leitura das obras de Platão se poderá dizer o mesmo que um dia disse Aristóteles a propósito da verdade em geral: “a coisa é em parte fácil porque ninguém pode errar totalmente o tiro, e em parte difícil, porque ninguém alcança a precisão necessária” [3]. Uma maneira muito ilustrativa de equacionar a dificuldade do problema, que igualmente circunscreve a esfera da própria indagação. E este é o primeiro factor de incerteza que recai sobre a possibilidade de se conhecer o verdadeiro pensamento retórico de Platão.
Em segundo lugar, é tão forte e tão frequente a tendência para se identificar as ideias filosóficas de Platão com o que diz o personagem Sócrates, que ameaça transformar-se em mera rotina. E, no entanto, é, no mínimo, duvidosa a legitimidade de tal identificação. Existem, por certo, indícios (mais ou menos dispersos e quase sempre dúbios) que nos permitem antever essa possibilidade, mas nada mais do que isso. É o caso da ligação que sempre se poderá fazer entre a enorme admiração que Platão sentia pelo seu amado mestre e o facto de, em quase todas as suas obras, ter reservado para Sócrates o papel de condutor do diálogo, dotando-o mesmo de uma tal superioridade sobre os demais intervenientes, que lhe permite superá-los em qualquer situação. Verifica-se, igualmente, que nos diálogos mais agonísticos, Sócrates “pode replicar a todos os participantes mas ele próprio nunca é replicado” [4]. E não custa ver aqui, duas opções reportáveis ao pensamento filosófico do próprio autor que, no entanto, não confirmam, por si só, a aludida legitimidade de identificação. Há ainda o “argumento do anonimato”, segundo o qual, embora em nenhuma parte da sua obra Platão fale em nome próprio e tenha antes optado por transpor na forma dramática a confrontação de opiniões de outros, “o recurso à forma dialogada não significa que Platão tenha querido permanecer anónimo ou esconder-se por detrás das opiniões dos seus personagens fictícios (...)”[5], assim como não consta que tenha alguma vez feito circular as suas obras sob nome falso.
Mas a questão é bem outra. Não se trata de estabelecer (ou desfazer quaisquer dúvidas sobre) a autoria dos diálogos, pois não está em causa quem escreveu a obra e sim o que é que o autor quis escrever ou comunicar. É esta tarefa hermenêutica, que nenhuma obra filosófica dispensa (mas que no caso dos diálogos assume uma excepcional dificuldade), que teremos pela frente sempre que nos interrogarmos sobre a perspectiva platónica da retórica. Diz-se, com muita frequência, que essa excepcional dificuldade de interpretação fica a dever-se, em grande parte, ao facto de Platão ter escrito os seus textos filosóficos sob a forma de diálogo. Mas não é verdadeiramente a forma dialógica que se opõe ao lance hermenêutico. O que dificulta a compreensão da obra de Platão é o género literário e não a forma. É cada obra ser um drama e não apenas um diálogo, ou dito de outro modo, pura ficção em vez do eventual relato de algum debate filosófico em concreto. O que nos desconcerta é o facto dos seus diálogos serem a um tempo filosofia e poesia, ciência e arte e de nunca se discernir com rigor através de que personagem o autor se expressa (se é que se expressa) ou se o faz em registo de sinceridade ou de pura ironia. É, enfim, a teatralidade que Platão põe ao serviço da comunicação filosófica, distribuindo os papéis mais adequados a cada um dos intervenientes, não apenas em função da controvérsia que pretende desenvolver, mas também, naturalmente, de modo a assegurar uma dramatização que prenda a atenção do leitor. Os diálogos devem ser lidos como dramas, diz Szlezák [6], para quem a configuração dramática e psicagógica das conversações filosóficas era para Platão tão lúdica e engenhosa que os próprios diálogos se terão ficado a dever também ao seu instinto de genial artista e escritor. Poderemos então confiar na literalidade de uns diálogos que, por vezes, parecem mostrar-se mais acessíveis à crítica de arte do que à análise filosófica?
A mais atenta leitura do Górgias não conduz à evidência de que todas as intervenções de Sócrates coincidam fielmente com o pensamento retórico de Platão. Mas ainda que tal sucedesse, quem garante que o personagem Sócrates é o único representante das suas doutrinas? Porque não serão os restantes intervenientes também importantes para se apreender a globalidade do pensamento retórico do autor? Que grau de correspondência existirá entre as diferentes “falas” dos respectivos personagens e o pensamento de Platão? Terá cada personagem sido desenhado exactamente à medida do que essas figuras históricas eram realmente? Quando Sócrates leva Górgias a admitir que quem queira aprender retórica com ele ficará “em condições de ganhar o assentimento de uma assembleia sobre qualquer assunto, sem a instruir e recorrendo apenas à persuasão” [7], está apenas a querer dizer que o retor não precisa de conhecer a matéria que se discute, basta-lhe uma certa técnica de persuasão. Mas ao fazê-lo, vai contra os princípios enunciados pelo próprio Górgias “que em sua classificação dos discursos, requeria do retor um conhecimento seguro dos argumentos, tanto dos ‘meteorológicos’ (isto é, das ciências naturais) como dos judiciais ou filosóficos” [8]. Sabendo-se como Platão dominava a técnica dramática com que estruturou os seus diálogos, até onde terá levado a manipulação dos seus personagens? Não se sabe. Logo, ver nas declarações retóricas de Sócrates autênticas expressões do pensamento platónico, é cair no erro crasso de tomar como certo o que permanece duvidoso. Seria possível, por exemplo, que Górgias alguma vez se mostrasse tão embaraçado frente a Sócrates, como aparece no diálogo que levou o seu nome, a ponto de desaparecer de cena logo no início da discussão e ficar praticamente sem dizer mais nada até final? Estas perguntas não são perguntas retóricas. Mas todas ou quase todas criam uma situação genuinamente retórica se, como se julga, para elas não existe ainda uma resposta exacta ou inteiramente satisfatória. Porque este é o lugar de eleição da retórica, aquele em que surge uma questão ou pergunta e não dispomos de “via única” para lhe responder. Só o recurso à legitimidade crítico-consensual permite descobrir e fazer partilhar a melhor explicação possível para cada problema. A opinião a que a retórica conduz surge então, para todos os efeitos, como uma verdade ainda não estabelecida, cuja aprovação consensual, à falta de melhor critério, lhe confere um importante valor de uso e de oponibilidade. Daí que a retórica seja também, em última análise, um excelente método de testar a sustentabilidade das opiniões.
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Notas
[1] Investigador do LabCom da Universidade da Beira Interior
2 Sobrevivência bem ilustrada pelo recrudescimento dos estudos retóricos, especialmente a partir da década de sessenta, do século passado.
3 Vide os trabalhos preparatórios para a constituição do GT-Grupo de Trabalho de Retórica e Argumentação, no âmbito da SOPCOM - Associação Portuguesa das Ciências da Comunicação, bem como a inclusão de uma Mesa Temática sobre Retórica da Argumentação, nos mais recentes Congressos das Ciências da Comunicação realizados no nosso país (III SOPCOM, II Ibérico e VI LusoCom).
4 Um desses nefastos efeitos traduz-se na persistência de uma certa aversão à retórica por esta se orientar para o consenso e não para a verdade, quando, como tão oportunamente lembrou Chaim Perelman, sem as opiniões, as aparências e as impressões, o acesso à verdade nos estaria vedado.
5 Na concepção platónica, a adulação equivale a uma prática vergonhosa que dissimuladamente se faz passar por arte e que, sempre por intermédio do prazer, persegue e ludibria os incautos a quem convence do seu alto valor.
6 Platão defende que a cozinha é a adulação disfarçada de medicina.
7 Platão, Górgias, Lisboa, Edições 70, 1991, pp. 82-83.
8 id., ibid., p. 66.
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