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  • Textos de Américo de Sousa: 04/01/2006 - 05/01/2006

    23.4.06

    PODE O JORNALISMO SER ISENTO E RIGOROSO?

    Comunicação apresentada ao LUSOCOM 2006 - VII Congresso Lusófono de Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade de Santiago de Compostela, em 22 de Abril 2006:


    Resumo: Embora teoricamente figurados como deveres básicos nos códigos deontológicos que regem a actividade jornalística, os valores de isenção e de rigor são hoje frequentemente contestados, quase sempre pelo recurso ao argumento de que o jornalista nunca é alguém (totalmente) isento, neutral, independente ou imparcial. O que pode funcionar como verdadeira almofada teórica para justificar todos os excessos e, muito especialmente, a falta de objectividade jornalística. A dupla hipótese que aqui se formula e pretende testar vai, porém, em sentido contrário: o argumento não resiste a uma apreciação crítica mais exigente, para além de que, sem isenção e rigor, é o próprio jornalismo que não se cumpre.

    Palavras-chave: Jornalismo-Objectividade-Isenção


    Abstract: Although theoretically put forward as essential requirements in deontological codes ruling the press, values concerning exemption and strictness have of late often been contested, most of the times arguing that the press is never (totally) exempt, neutral, independent and impartial. This argument, however, may be used to justify all excesses and, most particularly, the lack of objectivity in the press. The double hypothesis presented in this paper, which will be put to the test, runs in the opposite direction: the usual argument does not withstand critical analysis, and, without exemption and strictness, the press itself would not be possible.

    Key-Words: press – objectivity - exemption



    PODE O JORNALISMO SER ISENTO E RIGOROSO?

    Vai já para uma dezena de anos que uma das vozes mais autorizadas do jornalismo português pôs o dedo na ferida: “se os jornalistas postulam que está ao seu alcance ‘relatar os factos com rigor’, qual o sentido de recusar ou evitar o conceito de ‘objectividade’?” (1). A pergunta era, obviamente, retórica mas serviu à medida para denunciar a contradição. Pode haver objectividade sem rigor ou rigor sem objectividade? Partir-se-á aqui da premissa de que no jornalismo, como em qualquer outra actividade comunicacional, é forçoso que o rigor tenha um recorte conceptual objectivo, sob pena de nada se poder comunicar. Daí que quem admite o rigor e ao mesmo tempo nega a isenção e a objectividade, possa parecer tão incoerente como se aspirasse à credibilidade sem que com o rigor se quisesse comprometer.

    Surpreende, por isso, que continue a haver entre jornalistas, professores e investigadores de jornalismo, quem defenda que a isenção e a objectividade, pura e simplesmente, não existem. Uma e outra seriam apenas “mitos produzidos para dar ao jornalismo uma imagem de competência que não lhe pode ser conferida” (2). O que começa por ser algo estranho, pois fica-se sem saber onde irá o jornalista competente buscar a sua competência se o próprio jornalismo a não possui. Mas mais estranha, ainda, é a suposta justificação, de que não existe objectividade jornalística porque “o jornalismo é uma actividade exercida por pessoas que têm uma consciência e uma idiossincrasia, que olham para a realidade que os envolve a partir de uma determinada perspectiva (que pode não ser a dos outros)” (3).

    Numa outra versão deste mesmo tipo de relativismo, afirma-se que “é impossível a informação total e a objectividade, tanto no jornalismo como em qualquer actividade humana” (4). Também aqui as razões invocadas não se afastam muito das que são tradicionalmente avançadas pelo subjectivismo jornalístico, em geral: dado que a informação é subjectiva na sua origem, na transmissão e na recepção, “A mesma mensagem terá tantos significados quantos sejam os seus receptores” (5). Há ainda quem recuse a objectividade jornalística com base numa eventual incapacidade dos jornalistas a ela acederem, principalmente devido a três tipos de limitações: primeiro, como todo o ser humano, o jornalista só apreende os factos que se situem dentro do seu próprio quadro de percepção; segundo, o jornalista está sempre subordinado à sua maior ou menor capacidade de exprimir com rigor a parte do real que apreendeu; terceiro, quer no que observa, quer no que relata, o jornalista sofre sempre a influência do seu sistema de valores e da sua particular relação com o mundo (6).

    Ver-se-á que este modo de pensar a (não) objectividade do jornalismo enfrenta sérias dificuldades. Desde logo, porque subverte totalmente o implícito contrato de recepção entre o jornalista e o leitor. Num jornalismo sem objectividade, deixam de imperar os valores de imparcialidade, de isenção e de rigor próprios do chamado jornalismo de referência e que são, entre outros, constitutivos do exercício da cidadania. O jornalista pode passar a dizer o que lhe vier à cabeça, escrever sobre assuntos da sua exclusiva preferência ou interesse pessoal, cingir-se à realidade ou misturar ficção. É indiferente. Porque o leitor não tem nada a ver com isso. A voz de comando é agora a de um critério jornalístico verdadeiramente à solta e sempre sujeito à mais rasteira das invocações. Perante um quadro destes, que estranha razão poderia levar o leitor a passar um cheque em branco a um jornalista que não respeita o princípio da objectividade, quando, precisamente por isso, a maior vigilância crítica o deveria submeter? A recusa da objectividade jornalística atenta, pois, contra os direitos do leitor, quando não, contra a sua boa-fé.

    É certo que os cultores do subjectivismo jornalístico, porventura acossados pela incongruência de um jornalismo totalmente descomprometido perante o leitor, avançaram, entretanto, com a ideia de que a honestidade é o sucedâneo mais indicado para a “impossível” objectividade. Logo se vê, porém, que num jornalismo concebido como actividade subjectiva e sem qualquer pretensão de objectividade, a própria exigência de honestidade terá de forçosamente se limitar àquela “honestidade que diz: foi assim que eu vi” (7). O problema é que, como se sabe, “Não basta relatar os factos com verdade, é necessário dizer a verdade dos factos” (8). E isso implica que o jornalista vá além da mera reprodução fiel do que lhe chegou ao conhecimento e se certifique, tanto quanto possível, da sua verdade. É aqui que a dimensão objectiva da verdade lhe sai ao caminho. Porque a verdade dos factos - qualquer pessoa o percebe intuitivamente - tem de existir independentemente de quem a reconhece. Se a verdade de um facto dependesse de quem a reconhece, se um facto pudesse ser um facto para este sujeito mas não para aquele, haveria então que abandonar o próprio conceito de “verdade dos factos” e substituí-lo pelo da “verdade dos sujeitos”. Dito isto, importa mostrar como a ideia de recusar a objectividade jornalística é não apenas errada mas também perigosa para o futuro do próprio jornalismo.

    No seu mais recente livro, “Pensar outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade”, o filósofo Desidério Murcho dá-nos uma visão rigorosa e actualizada sobre a debilidade teórica do subjectivismo. Tomando como ponto de partida a popular e tão repetida expressão “é tudo muito subjectivo”, o autor adianta, desde logo, que o primeiro cuidado a ter é o de indagar o que quer aqui dizer "subjectivo". Regra geral, assume, significará que tudo depende da perspectiva de cada um. O domínio da subjectividade seria então “irremediavelmente perspectívico” (9). E de facto, se uma pessoa observa uma estrada do cimo de um monte diz que ela desce; mas se a observa a partir do vale, diz que ela sobe. A confusão do subjectivismo é a de “pensar que só porque é possível ver a mesma coisa de diferentes perspectivas isso assinala uma falha de objectividade” (10). Quando a verdade é que, no exemplo dado, não há qualquer subjectivismo. Haveria sim se uma pessoa no cimo do monte pudesse dizer com igual verdade que a estrada sobe, ou se observando-a a partir do vale, do mesmo modo, pudesse concluir que ela desce, o que não é o caso. As afirmações das duas pessoas só parecem opostas quando retiradas do contexto ou da situação total. O que as torna a ambas verdadeiras, lembra Desidério Murcho, é o mesmo ângulo da mesma estrada. A compreensão perspectívica da subjectividade é assim um logro, não sendo preciso submetê-la a grande escrutínio para que o seu aparente subjectivismo profundo se mostre, afinal, tal qual como é: um subjectivismo trivial, que remete para uma subjectividade indisputável, própria da actividade dos sujeitos e perfeitamente compatível com a noção de objectividade.

    Versão mais forte de subjectivismo é a que parte da ideia de que há afirmações cujo valor de verdade não está subordinado ao que as coisas são independentemente dos sujeitos, mas antes ao modo como estes reagem a tais coisas, e que sugere, além disso, que as nossas escolhas são aleatórias, no sentido de não obedecerem a quaisquer razões. Desidério Murcho dá o exemplo da salada de alface: “uma pessoa pode gostar de salada de alface e outra detestar a mesma coisa. E nada mais há a dizer, porque estamos no domínio do puramente subjectivo” (11). O mesmo sucederia com qualquer outro tipo de afirmações e em qualquer domínio da vida, desde logo, no jornalismo: tudo dependeria da pessoa em causa, neste caso, do jornalista. Mas o que se pode dizer deste subjectivismo total é que é absurdo. Do ponto de vista de uma vida partilhada, se a reacção do outro fosse completamente imprevisível, a própria vivência comunitária estaria em risco. E não está. Pelo menos, por esse motivo. Se o verdadeiro ou o falso, o certo ou incerto, o bom ou o mau dependessem apenas da subjectividade de cada um, como conseguiriam os homens comunicar entre si? Vejamos o caso mais extremo das preferências pessoais. Elas são evidentemente subjectivas, naquele sentido banal de que se reportam a sujeitos. Mas já não cognitivamente subjectivas, porque podem ser justificadas, podem ser compreendidas. Não valem todas a mesma coisa, não são igualmente aceitáveis, não são aleatórias. Uma pessoa pode gostar de fumar, e outra, não. Provavelmente, uma valoriza mais o prazer e a descontracção que o fumo lhe proporciona, do que o mal que lhe faz à saúde e que não ignora. A outra, o inverso. Mas a decisão ou comportamento de cada uma, tem uma explicação objectiva. Não é tudo subjectivo, não é tudo aleatório, não é tudo irracional. E como é lógico, somente se tudo fosse subjectivo, aleatório e irracional se poderia recusar a possibilidade de um conhecimento objectivo. Eis porque na ciência e na vida, na filosofia como no jornalismo, “não é possível compreender a subjectividade sem o pano de fundo da objectividade” (12).

    Acresce que se tudo fosse muito subjectivo, a própria afirmação de que tudo é muito subjectivo seria também ela muito subjectiva. E sendo muito subjectiva, poderia perfeitamente ser verdadeira para umas pessoas e não para outras, tornando-se impossível apurar quais as pessoas que estariam erradas. A afirmação de que tudo é muito subjectivo é assim auto-refutante e, portanto, racionalmente inoponível a quem dela discorde, pois a partir daí deixa de haver qualquer razão ou fundamento para se poder considerar que uma afirmação, qualquer afirmação, seja melhor do que outra. É para este beco sem saída que a recusa da objectividade acaba por nos lançar. E por aqui se vê como o subjectivismo jornalístico assenta numa ideia tão errada como prejudicial. Num tempo em que, pela perversão mediática das tiragens ou das audiências, o jornalismo está sujeito a uma cada vez maior descaracterização, como poderia o jornalista prescindir do primado da objectividade, se é precisamente esse seu compromisso com o real e com a verdade, que ainda o distingue do animador, do guionista, do relações públicas ou até do próprio publicitário?

    Além disso, grosseiro lapso seria o de esquecer que o leitor existe e que, em última análise, é a sua reacção que dita o sucesso ou o fracasso desta ou daquela opção jornalística. Como avisadamente sustenta Mário Mesquita,

    “Podem os jornalistas riscar da deontologia a palavra ‘objectividade’, mas isso não lhes evitará o confronto com a problemática em causa. Por mais que contornem o conceito, suprimindo-o dos códigos deontológicos ou recusando-lhe qualquer espécie de validade (ou de operatividade), os destinatários da informação continuarão a estabelecer unilateralmente que as notícias devem relatar os ‘factos’ tal como eles se verificam, ou seja, que a tal ‘objectividade’ – inatingível, por definição – deve constituir-se em critério de avaliação da prática jornalística” (13)

    O que nem aos leitores nem aos jornalistas é permitido fazer é confundir a objectividade possível com a objectividade absoluta. Não obstante, é de supor que seja essa confusão conceptual que invariavelmente leva os primeiros a exigirem de mais e os segundos a garantirem de menos. Neste ponto é lapidar a observação de Michael Schudson: “o esforço de comunicar um facto absoluto é simplesmente uma tentativa de alcançar aquilo que é humanamente impossível” (14). Mas chegar aqui, é como chegar a um entroncamento: ou viramos para o lado da subjectividade total, se acreditamos que as coisas só têm o valor que lhes atribuímos, ou viramos para o lado da objectividade possível, caso reconheçamos que têm valor em si mesmas, ou seja, independentemente da nossa apreciação. Tal como acontece na estrada, onde nem sempre viramos para o sítio certo e, por vezes, só nos damos conta disso ao fim de muitos quilómetros, também aqui, o erro e a ilusão espreitam a todo o momento, e nem sempre são detectados a tempo, principalmente se não se dispõe do mais correcto entendimento sobre o tipo de objectividade que está ao nosso alcance.

    Ora lá porque é humanamente impossível comunicar um facto absoluto, isso não significa que seja impossível comunicar objectivamente um facto. A própria ciência não busca nem ascende a verdades absolutas e não é isso que lhe retira objectividade. Trata-se, em primeiro lugar, de uma objectividade metódica: os cientistas sabem que os seus métodos não são completamente seguros mas que podem ser constantemente aperfeiçoados. Depois, é também uma questão de atitude: há uma tradição de crítica e fiscalização sistemática da actividade, de modo a detectar e a superar os respectivos erros. Daí a definição do cientista Carlos Fiolhais: "A ciência é a recusa permanente do erro" (15). Pergunta-se: como poderia o jornalismo ambicionar a mais objectividade do que esta? Só uma postura de tudo ou nada em matéria de objectividade explicaria o jornalismo subjectivista. Mas ainda assim, seria racionalmente suportável que, à falta do tudo, nos contentássemos com o nada, sendo certo que tratando-se de um nada igualmente subjectivo, até o nada correria o risco de desaparecer?

    De todo o modo, afirmar que não existe objectividade jornalística só porque o jornalismo é feito por pessoas que têm uma consciência e uma idiossincrasia, ou porque olham para a realidade por uma perspectiva que pode não ser a dos outros, pouco mais do que nada é. Tenha-se em conta que as pessoas que fazem ciência possuem essas mesmas características, olham para a realidade de maneira semelhante e, contudo, produzem um conhecimento inquestionavelmente objectivo que é, de resto, a sua verdadeira razão de ser. Por outro lado, quem diz que a mesma mensagem terá tantos significados quantos sejam os seus receptores, querendo com isso mostrar que a objectividade é impossível, denota uma enviesada concepção de objectividade, pois ser objectivo não é necessariamente emitir opiniões partilhadas por toda a gente, mas antes produzir afirmações cuja sustentabilidade racional por todos possa ser verificada. É perfeitamente possível que uma mesma mensagem suscite diferentes leituras, não apenas entre vários destinatários como até na mesma pessoa e, ainda assim, permaneça objectiva. Basta que exista uma justificação racional para cada uma das respectivas interpretações. Idêntico raciocínio manda declinar o argumento de que as naturais limitações dos jornalistas (e dos seres humanos em geral) no campo da percepção, observação e relato do real, condenariam o jornalismo à mais pura subjectividade (16). Sem dúvida que o jornalista é sempre influenciado pelo seu quadro de valores e pela sua particular visão do mundo. Uma vez mais, contudo, só uma equivocada noção de objectividade permitiria retirar a conclusão de que as diferentes versões da mesma realidade que daí resultam, são, por si só, a prova acabada de que a objectividade jornalística é impossível. Os seres humanos não são infalíveis ou omniscientes. Os seres humanos não possuem todos o mesmo tipo de vivências, nem a mesma informação. Os seres humanos têm sensibilidades e preferências distintas. Mas são precisamente essas diferentes subjectividades que tornam ainda mais imperativo eleger a objectividade como critério de avaliação da qualidade jornalística.

    Poder-se-á agora perguntar o que significa, afinal, o primado da objectividade. Que cada facto admite apenas uma maneira (objectiva) de ser descrito ou relatado? Que a objectividade jornalística se esgota na obediência a um certo conjunto de regras processuais, metodológicas ou estilísticas? Que o jornalista tem a obrigação de aceder à compreensão última e definitiva do acontecimento, tal qual ele se deu? Que a notícia deve limitar-se estritamente à mais enxuta e avulsa descrição do facto? E já agora, que a notícia está para a objectividade assim como a opinião está para a subjectividade? A resposta, em bloco, a estas cinco questões, só pode ser negativa. Porque perseguir a objectividade no jornalismo não é, nunca poderia ser, “limitar a criatividade dos jornalistas envolvendo-os num espartilho incómodo” (17), o que fatalmente conduziria à mesmidade, quer de méritos quer de resultados e, em última análise, à própria desresponsabilização. O jornalista que opta por uma intenção e por uma conduta de objectividade, antes reconhece e faz sua a exigência ética e epistemológica de pôr a sua arte ao serviço da verdade, com a máxima isenção e rigor possíveis. Que melhor prova poderia dar do seu sentido de responsabilidade? Não se trata, por isso, de indexar mecanicamente cada tarefa a meia dúzia de conhecidas regras - testar a credibilidade das fontes, apresentar pontos de vista divergentes, ouvir ambas as partes de um conflito, recorrer a citações, etc. – como quem liga o piloto automático para a verdade, mas sim, de uma questão de atitude, de intenção e de conduta de objectividade, por parte de cada jornalista. Trata-se antes de reconhecer que se o jornalismo tem como função levar ao leitor a informação de que este carece para formar um juízo, só lhe é legítimo fazê-lo em obediência aos princípios da imparcialidade, do rigor e da objectividade. Trata-se de recusar, por exemplo, esta descabelada resposta que o jornalista de uma estação de televisão, quando entrevistado, deu à pergunta “Qual é o segredo para se ser isento e imparcial, como tu?”:

    “Tenho uma teoria muito própria sobre a isenção: ela não existe. Passei o meu curso inteiro de 5 anos a batalhar contra o estigma da isenção e bato-me contra quem for preciso, porque a isenção não existe. (…) não tenho uma visão isenta da realidade, não posso ter. Posso é tentar ter uma visão objectiva e, mesmo isso, é sempre subjectivo. Posso pensar que sou rigoroso naquilo que faço e acho que o rigor é essencial (…) acho que temos que procurar ser rigorosos, temos que quebrar o mito da objectividade e da isenção e temos que ter a ideia que estamos a passar uma mensagem” (18).

    Aqui temos mais um claro exemplo do embaraço a que conduz o subjectivismo jornalístico. O entrevistado reconhece que não é isento, que pode tentar ter uma visão objectiva mas que não a conseguirá porque mesmo aí será sempre subjectivo. Pode apenas pensar que é rigoroso. Nada mais. Mas o problema é que também pode apenas pensar que apenas pensa que é rigoroso. E aí, como ficamos? Diz que temos que ser rigorosos – porque o rigor é essencial - e ao mesmo tempo considera que a objectividade e a isenção são dois mitos. A pergunta deveria então ser, mais exactamente, a seguinte: que estranho rigor é esse que dispensa a isenção e a objectividade? Esse, sim, pode ser o seu bem guardado segredo.

    Como primeira consequência absurda deste jornalismo subjectivista, temos que o jornalista deixaria de se responsabilizar pelo que escreve. Aliás, como poderia fazê-lo? Se tudo é tão subjectivo, é porque tudo vale por igual. Logo, pelo menos em tese, o jornalista pode escrever aquilo que lhe vier à cabeça sem que ninguém tenha o direito de o chamar à responsabilidade. E nada seria mais natural, num quadro de total ausência de objectividade. Mas se nada mais há para além da maneira como cada um olha a realidade, como se explica a crescente importância que os próprios jornais vêm atribuindo à figura de provedor (19), quando se sabe que uma das suas principais funções é a de avaliar as queixas e as sugestões dos respectivos leitores? É que se tudo for muito subjectivo no jornalismo, nesse caso, nada há a dizer. Tudo estará bem, ou melhor, nem bem nem mal. O leitor apresenta um caso de escandalosa falta de isenção? Contactado pelo provedor, o jornalista responde que é tudo muito subjectivo. Falta de rigor? Idem. Falta de objectividade? Idem aspas. É tudo muito subjectivo. Quem disse que o jornalista tem que agradar a todos os leitores?

    Bem visível é o ridículo de que se cobre este posicionamento subjectivista, quer quando teoricamente examinado, quer quando confrontado com as suas consequências práticas. Porque ainda que fosse ética e epistemologicamente suportável (e, como vimos, não é), dificilmente tal concepção de jornalismo vingaria numa altura em que se assiste à democratização do acesso à palavra no espaço público, nomeadamente, com o explosivo aparecimento dos blogues, por alguns vistos já como potencial ameaça à profissão de jornalista. É certo que esta ameaça, pelo menos por agora, está longe de ser consensual. Estrela Serrano, por exemplo, considera que os blogues são “espaços de opinião, livres de qualquer ‘contrato com o leitor’ que enriquecem e alargam o espaço público mediático tradicional”, mas detecta “uma diferença essencial quase ontológica” entre blogues e jornalismo, que residirá no facto de só este último “criar nos cidadãos um ‘horizonte de expectativas’, baseadas na ‘responsabilidade social’ que obriga o jornalista ao respeito por um conjunto de princípios de natureza ética e deontológica, que fundam a sua legitimidade, autoridade e credibilidade” (20).

    Repare-se como na linha deste raciocínio, a especificidade do jornalismo em relação aos blogues se fica a dever, sobretudo, às suas marcas de objectividade: criação nos cidadãos de um horizonte de expectativas, responsabilidade social do jornalista e obediência a um conjunto de princípios éticos e deontológicos. É esta objectividade que parece faltar aos blogues, sobre os quais se pode dizer que “Sendo um espaço de liberdade, de exposição intimista de posições, comentários, tudo o que se queira” existe sempre o risco de se valorizar excessivamente “informações sem fundamento, pistas que se revelam falsas ou enganadoras” (21). Que sentido faria, por isso, praticar um jornalismo com a liberalidade subjectiva que, como vemos, passa por ser o principal “senão” dos blogues? Se, como defende Nelson Traquina, “A transgressão da fronteira entre a realidade e a ficção é um dos maiores pecados da profissão de jornalista” (22), só uma atitude de isenção, de rigor e de objectividade o poderá evitar. E para isso, é preciso acabar de vez com a errada ideia de que tudo é subjectivo e que um facto, uma notícia, ou mesmo uma opinião, só podem ser avaliados à luz da “consciência” e da “idiossincrasia” de cada um, de preferência, do jornalista. É que, a ser assim, não teríamos muito provavelmente assistido ao mediático episódio que ocorreu durante as eleições presidenciais portuguesas de 2006 onde, depois de o candidato Mário Soares ter acusado publicamente a SIC de falta de isenção, a direcção de informação desta última respondeu com um comunicado que não poderia ter sido mais assertivo:

    “A Direcção garante que a SIC e a SIC Notícias dão provas diárias de isenção, pluralismo e independência jornalística desde o dia em que iniciaram as emissões" (23)

    Não cabendo aqui julgar o diferendo, ele serve, contudo, para ilustrar como os princípios de isenção e de rigor jornalísticos só são exequíveis quando avaliados num quadro de objectividade e isto, quer para quem os reivindica, quer para quem os garante.

    Há, finalmente, quem funde a recusa do primado da objectividade e, portanto, também da isenção e do rigor, na óbvia constatação de que o jornalista, ao seleccionar os acontecimentos que irão ser notícia, é sempre obrigado a formular os “seus” juízos de valor. Afastar-se-ia assim, do facto para a opinião. Mas esta é, em primeiro lugar, uma objecção completamente irrelevante que nada acrescenta à compreensão do que está em causa. O jornalista, como qualquer outra pessoa, pode receber (e recebe) informação do mundo exterior mas só conhece interiormente, ou seja, pelo recurso ao seu mundo cognitivo e aos “seus” juízos de valor e não aos dos outros. Porque o conhecimento é, para todos os efeitos, um acto solitário, mesmo quando proporcionado por muitos. Em segundo lugar, a generalizada ideia de que a notícia está para a objectividade assim como a opinião está para a subjectividade, fica a dever-se a grosseiro equívoco. Sobre qualquer jornalista recai sempre a mesma exigência ética de respeitar a verdade, quer quando relata um facto, quer quando o comenta. Daí que a sua interpretação dos factos deva representar uma permanente tentativa de passar da subjectividade à objectividade. “O que a subjectividade não pode é continuar a ser vista como albergue de erros grosseiros, manipulações evidentes, atropelos lógicos ou pura discricionariedade, nem servir de desculpa para opiniões sem a mínima justificação racional. Porque sendo embora condição do próprio conhecimento, só objectivamente se pode afirmar sempre que se apresente como portadora de alguma razão.” (24) É por aí que passa a isenção e o rigor do jornalismo.

    Américo de Sousa


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    Notas


    1. Mário Mesquita, “Em louvor da santa objectividade”, in Revista JJ-Jornalismo e Jornalistas, N.º 1, Janeiro/Março 2000 – Comunicação proferida em 1996, em sessão organizada pela Câmara de Cascais e pelo Clube de Jornalistas. < id="517&idCanal"> [Consulta: 20 Janeiro 2006].

    2. Entrevista a Ricardo Jorge Pinto – “O jornalista vai perder o monopólio da informação”, in Forum Media-Revista do Curso de Comunicação Social - ISPV/ESEV, N.º 6, p. 20. [Consulta: 20 Janeiro 2006].

    3. Idem.

    4. “Saramago questiona Independência do Jornalismo”, Público, 30 Julho 2004 [Consulta: 20 Janeiro 2006].

    5. Idem.

    6. Cf. José Rodrigues dos Santos, (2002), A Verdade da Guerra, Lisboa: Gradiva, p. 57.

    7. Entrevista a Ricardo Jorge Pinto – “O jornalista vai perder o monopólio da informação”, in Forum Media-Revista do Curso de Comunicação Social-ISPV/ESEV, N.º 6, p. 20. [Consulta: 20 Janeiro 2006].

    8. Mário Mesquita, op. cit.

    9. Desidério Murcho (2006), PENSAR OUTRA VEZ: FILOSOFIA, VALOR E VERDADE, Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, p. 65.

    10. Idem, pp. 65-66.

    11. Idem, p. 67.

    12. Idem, p. 68.

    13. Mário Mesquita, op. cit.

    14. in Traquina, N., (2002), Jornalismo, Lisboa: Quimera Editores, Lda, p. 141.

    15. Carlos Fiolhais, em entrevista à “Notícias Magazine”, 15 Janeiro 2006.

    16. Cf. José Rodrigues dos Santos, op cit.

    17. Cf. Mário Mesquita, op. cit.

    18. Entrevista a Rui Pedro Reis in Forum Media-Revista do Curso de Comunicação Social-ISPV/ESEV, N.º 6. [Consulta: 20 Janeiro 2006].

    19. Três dos maiores diários portugueses - “Jornal de Notícias”, “Diário de Notícias” e “Público” - têm Provedor do Leitor.

    20. in Manuel Pinto, “Blogues, jornalismo e cidadania (1)” - Provedor do Leitor, Jornal de Notícias, 16 Outubro 2005.

    21. in Manuel Pinto, “Blogues, jornalismo e cidadania (2)” - Provedor do Leitor, Jornal de Notícias, 23 Outubro 2005.

    22. Nelson Traquina, op. cit., p. 10.

    23. “SIC responde a acusações de Mário Soares”, Diário de Notícias, 04 de Janeiro de 2006. [Consulta: 20 Janeiro 2006].

    24. Américo de Sousa, “O estatuto da subjectividade no campo jornalístico”. Comunicação apresentada no I Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos e II Congresso Luso-Galego de Estudos Jornalísticos, na Universidade Fernando Pessoa - Porto, em 10 Abril 2003.


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    Bibliografia



    Gillmor, Dan: Nós, Os Media, Lisboa, Editorial Presença, 2005


    dos Santos, José Rodrigues: A Verdade da Guerra, Lisboa, Gradiva, 2002


    Murcho, Desidério: PENSAR OUTRA VEZ: FILOSOFIA, VALOR E VERDADE, Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2006


    Traquina, Nelson: Jornalismo, Lisboa: Quimera Editores, Lda, 2002

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